terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A heroína do cotidiano

Escrevi este texto em 2008, quando estava na faculdade. O exercício fazia parte do projeto "Revista Entrevista", do Curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo da Universidade Federal do Ceará. Idealizada pelo mestre Ronaldo Salgado, a publicação, que este ano completou 18 anos, tem a proposta de explorar a fundo o perfil dos seus entrevistados. Sem dúvida, foi uma das maiores experiências que tive, do ponto de vista jornalístico e humano.

A seguir, o olhar que tive sobre dona Terezinha Mapurunga, uma das entrevistadas da Edição 20.


Existem pessoas com as quais não precisamos conviver muito para admirar; quando menos esperamos, passamos a nutrir por elas um afeto inexplicável. Dona Terezinha Mapurunga é assim: basta se acostar um pouco mais para perceber a grandeza e a simplicidade de sua alma. Olhar terno e cansado, de quem muito já lutou nessa vida. Presença que já fala por si mesma, ainda que envolta num silêncio. Beleza e força interior que não se compara; se contempla. Trajetória resumida numa palavra só: exemplo.

Desde a infância, vivida lá no Sertão das Oiticicas, a menina Terezinha já carregava consigo seu companheiro mais inseparável: o trabalho. Na fase em que criança só quer saber de brincar, ela pastorava os irmãos menores, vendia tecidos na venda e ensaiava com a mãe, dona Julita, o ofício (ou arte) que a tornaria conhecida anos mais tarde: a culinária.

Levando as recordações das terras onde nasceu, dona Terezinha mudou-se para o aconchego da sede de Viçosa do Ceará ainda na flor da idade. As festas no gabinete da Câmara Municipal marcaram a juventude vivida no paraíso da Ibiapaba. “Era uma coisa linda, decente”, imagina. E foi na mocidade que um rapaz maduro, chamado Alfredo Miranda, se engraçou pela boneca de olhos azuis e tez branca. A esse cavalheiro, Terezinha deu a mão.

A celebração do matrimônio, em 1952, não teve pompas, mas foi revestida de todo sentido. Afinal, de que valem as aparências, se não existe a emoção da entrega? Dedicação, cumplicidade e superação são as bases desse amor de mais de cinco décadas, já eternizado. A história é capaz de emocionar até os corações mais desiludidos com essa “conversa fiada” de se querer bem. Entre os frutos plantados e colhidos na união, estão os sete filhos, dos quais ela se orgulha; sua riqueza maior, diz.

Como toda boa mãe, dona Terezinha sempre acolheu muitas pessoas em seu lar: de parentes vindos do sertão para estudar na cidade a visitantes estrangeiros e personalidades. Quase sem perceber, a morada, construída com o suor de seu Alfredo, foi se transformando na Casa dos Licores, ponto da cidade em que sons e sabores se enamoram, numa combinação perfeita.

A todos, naquele cenário bucólico e enigmático, ela parece tratar com a mesma atenção. A entrada pela cozinha; a degustação de quitutes arrumados sobre a mesa; o passeio pausado entre os tantos registros familiares espalhados pelo corredor e a visita à antiga bodega com cachaças envelhecidas e infindáveis tipos de “mijos de menino” fazem parte do percurso daqueles que por lá chegam. A melodia do pife de seu Alfredo dá o tom à visita, e os quitutes de dona Terezinha, o gosto. “As melhores petas do mundo!”, como proferem alguns.

Preparar o alimento, aliás, é só mais uma das coisas que a quituteira faz com primor e afinco. O que tanto importa não é, essencialmente, aquilo que ela faz, mas como faz. Amor e energia positiva parecem ser os principais ingredientes de petas, licores, “bulins”, biscoitos de nata e sequilhos. Em sua cozinha, tudo se cria, tudo se transforma. No diálogo travado conosco naquela tarde chuvosa de sábado (26 de abril de 2008), ela revelou, inclusive, a alegria que sente em servir e, mais ainda, de ver de perto o sorriso nos lábios de quem se apraz com suas iguarias. “Ah, eu fico orgulhosa, fico!”, entrega-se.

Mas se engana quem pensa que a “fama” pelo talento culinário lhe sobe à cabeça. dona Terezinha não se vangloria; não se ensoberbece; não busca os seus próprios interesses; não se irrita; não suspeita mal. É como o amor, assim descrito na carta de São Paulo aos Coríntios. Suas ambições são mais singelas; bens materiais não a iludem. Vive com sacrifício e, com a fé e a sabedoria que lhe são inerentes, vai reunindo forças para enfrentar as duras batalhas do dia-a-dia.

Talvez, em alguns aspectos, sua história se assemelhe a de tantos outros pequenos heróis e heroínas, esquecidos no anonimato. São pessoas que não lutaram em guerras, mas que venceram desafios na vida. Para alguns, biografias sem aparente valor; para nós, preciosas em sua singularidade. Portanto, eis aqui o retrato peculiar de dona Terezinha, a nossa brava e doce heroína do cotidiano.

Crédito da imagem: Alinne Rodrigues

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